Nas voltas do meu coração.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
A mania "de Chico" me faz viajar em suas composições, por apreço a sua obra, aí vai mais uma tentativa de uma possível leitura da música "Roda viva." 
"Roda Viva" foi composta por Chico Buarque para a peça homônima em 1967. As canções de Chico, mesmo que de forma implícita, sempre expressam algum problema. Com esta canção não é diferente. A canção exposta trás uma análise a partir do ponto de  vista da linguística aplicada e seus procedimentos.


A letra tem um chão histórico específico, ou seja, os obscuros anos da ditadura. É desse tempo que ela data, e é o que esse tempo representou para a experiência brasileira que ela aborda e cifra. Como dissemos, a composição de Chico se originou em meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura, simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um meio muito utilizado na época (e, de um modo geral, em períodos não democráticos, no Brasil e em outros países) para driblar a censura foi a metáfora, o despistamento, a linguagem figurada, a cifra.

O que é roda viva? Roda viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio, cortado; é ainda confusão, barulho. O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.

Na letra a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra. A roda ceifa, arranca aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente. A gente parou (de crescer) de repente. Note-se como é expressivo o uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue. Somos abortados na capacidade de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia como um rio é barrado, como um fluxo de sangue é estagnado.

Essa espécie de vendaval arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu sofrimento: arrebata-lhes ainda a viola . A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que não teve tempo de exibir tudo o que prometia.

A composição é cortada por dois movimentos: um, expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o desejo de ser o sujeito da própria história. A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento e a luta). O outro movimento expressa a ação abortiva exercida pela roda-viva. Esse movimento vem expresso numa frase reiterada: "Mas eis que chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá". A conjunção "mas" sinaliza justamente essa mudança de direção, sinaliza ação adversa. A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração". Essa fórmula, inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio uma situação absurda, fora do esquadro. De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural. Ela não pertence à ordem da razão.
Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração. Isso descreve muito a experiência brasileira, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista cultural. Quando estávamos começando a engatinhar na democracia, é instalado o regime totalitário, para o qual não existem indivíduos. Sufoca-se até a saudade (já cativa) de outros tempos.

Mas esse ambiente de tanto mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração advinda da mesma profusão de rodas, que diríamos serem antes de trator.
Para finalizar, quero destacar mais duas coisas. A primeira é que os últimos segundos da música são muito bons. O refrão vai se repetindo, acelerando gradativamente, reforçando a ideia de uma confusão, de uma roda que vai carregando tudo que se encontra à frente, não dá chance para respirar, uma bola de neve que vai crescendo, tomando proporções maiores que os indivíduos. E o segundo ponto importante para se falar está no título da música. Vale ressaltar que “Roda Viva” ao contrário ficará “Viva a Dor”, mostrando nitidamente a maneira que aquelas pessoas viviam, a dor que sofreram naquela máquina da morte que era a ditadura militar.

"A HISTÓRIA POR TRÁS DE "MEU CARO AMIGO".

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Meu caro Amigo foi antes de tudo uma espécie de desabafo de Chico e Francis Hime – instrumentista brasileiro renomado a quem também é creditada a autoria do clássico. Escrita, seguindo a linha da sutileza para burlar os olhos atentos dos generais, a canção trata-se de uma carta- canção em homenagem ao já falecido dramaturgo Augusto Boal, que vivia no exílio em Lisboa. Faz parte do disco de título quase igual “Meus caros amigos”. A seguir, a controvertida letra:

“Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chovem, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando e também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão
Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus.”.

Depois de anunciar que precisa contar ao destinatário “as novidades”, o autor lança os versos:
“Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol”.
Ora, o futebol, a predominância no Brasil de estilos como o samba e as (óbvias) variações climáticas não são exatamente novidades que mereçam ser destacadas em uma carta para um amigo distante.
Com uso da ironia, a mensagem passada é de que nada mudou no país desde a saída do exilado e que realmente “a coisa aqui tá preta”, como sugere um dos versos seguintes. Para “segurar esse rojão”, o eu-lírico (a voz que fala na letra) acaba buscando refúgio em meios de prazer momentâneo, como a “cachaça”, o “cigarro” e o “carinho”. Nesse contexto, a palavra “choro”, tida inicialmente como um estilo musical, assume outro sentido – representa a tristeza em relação à situação do país. E essa tristeza aparece disfarçada por uma suposta alegria, entremeada de “samba” e de “rock’n’roll”.
Além disso, quando ele se refere a seu lugar de origem como “Aqui na terra”, torna-se inevitável pensar em um “lá”, o local onde o destinatário da mensagem se encontra. Este lugar poderia ser um “céu” (em oposição a “terra”, com letra minúscula), reforçando a ideia de que a vida política e social do Brasil da época nem de longe lembrava a imagem idealizada de paraíso. Ou até mesmo o “espaço” (em oposição a “Terra”, planeta, com letra maiúscula), reforçando a ideia de que o amigo foi obrigado a sair do país, sumiu, ou, na linguagem informal, “foi pro espaço”.
Finalmente, na ultima estrofe, Chico Buarque cita nomes de pessoas reais: Marieta, sua esposa na época, Francis, o coautor da música, Cecília, a mulher de seu amigo. Consideramos, assim, um ato ilocutório representativo, sendo relacionado com a noção de verdade. É o discurso falando de si próprio, passando a ideia da realidade dentro de uma ficção, pois toda narrativa é ficcional porque supõe influências de quem narra.
Curioso é perceber que o artista, ao escolher a canção “Meu caro amigo” para dar nome ao disco, colocou-a no plural. Ou seja, apesar de a ideia original da canção ser mandar notícias a um determinado exilado, ela sai ainda mais do plano particular quando o álbum é batizado de “Meus caros amigos”. Isso porque havia mais “amigos” (exilados ou não) como Augusto Boal, vítimas da Ditadura. Assim, o próprio título do álbum reforça o caráter crítico que permeia não apenas esta, mas diversas de suas canções.